O morto vivo

Cenário: Consultório médico
Cena: O médico acaba de consultar o paciente e vai passar-lhe a “receita”.
MÉDICO: É meu velho, eu não tenho boas notícias para você não.
ASTROGILDO: (se arrumando, colocando a camisa, se abotoando, etc) – Fale logo doutor. Não precisa esconder nada de mim. Eu já estou preparado para o pior.
Para ser franco, eu até já escolhi a cor do meu caixão.
MÉDICO: E para ser franco. A coisa para o seu lado está esquisita. Note bem, o teu coração já não bate mais (só apanha) a sua pulsação cessou por completo.
Cientificamente você está morto. Entendeu? Mortinho da Silva. Aliás, eu nem sei o que você está fazendo em pé. Lugar de gente morta é no cemitério e deitada.
ASTROGILDO: É que eu sou teimoso… Mas doutor, vamos deixar de piadas. Vamos falar sério. Afinal o que é que eu tenho?
MÉDICO: Ora Astrogildo, então você acha que um médico de minha categoria, que já participou de congressos na Holanda tem tempo de ficar brincando. Se eu disse que você está morto, eu estou falando sério.
ASTROGILDO: Mas como? Que conversa mais besta doutor!!!
MÉDICO: Está bem. Você quer provas não é mesmo? Prá você não dizer que eu estou mentindo, coloque a mão no coração.
ASTROGILDO: (coloca a mão, para sentir as batidas).
MÉDICO: Sente alguma coisa? Alguma possível batida?
ASTROGILDO: Sinto não, doutor. Meu Deus, o que será isso?
MÉDICO: Agora tente sentir o pulso.
ASTROGILDO: (tentando sentir a sua pulsação).
MÉDICO: Sente alguma coisa?
ASTROGILDO: Nadinha… (faz cara de assustado).
MÉDICO: É como eu disse meu caro. O senhor está morto e eu estou lhe informando.
Apenas isto. O senhor está morto e não sabia. Cabe a mim como médico, dar-lhe a notícia.
ASTROGILDO: Mas como assim doutor?
MÉDICO: Lembra daquele remédio que eu venho te receitando há tempos? Ele é a única solução.
ASTROGILDO: Não doutor. Aquele remédio eu não quero.
MÉDICO: Então não posso fazer mais nada por você. Você está morto.
ASTROGILDO: Mas doutor, pensa bem… O que é que eu digo lá em casa? Ninguém vai acreditar em mim. Imagina só. Eu chego em casa, reuno a família e digo: Pessoal, eu estou morto. Ora doutor…
MÉDICO: Fique calmo Astrogildo. Eu já pensei nisso também. E é por causa disso que eu estou assinando o seu atestado de óbito. (Assina o atestado e entrega para o paciente). Aqui está. Agora vá para casa e comunique à sua família. E não se esqueça de convidar os amigos para o enterro. Tá?
ASTROGILDO: (desolado) Tá bom… Mas doutor, o senhor tem certeza de tudo o que está me dizendo? Eu tô morto mesmo???
MÉDICO: …da Silva, meu amigo. Mortinho da Silva. Deve ser teimosia. Você logo se acostuma, aí será mais fácil. À propósito, deixe-me fazer-lhe uma pergunta: O senhor pretende ser enterrado amanhã ou depois?
ASTROGILDO: Não sei. Mas eu não vou me esquecer de avisar o senhor. Pode ficar sossegado. (Sai triste, demorando para chegar na porta).
Cenário: Apaga-se a luz do consultório. Apenas um foco de luz acompanha Astrogildo caminhando cabisbaixo enquanto ouve-se a Marcha Fúnebre. Astrogildo para junto com a música (1a parada).
ASTROGILDO: (falando sozinho). Mas não é possível. Eu não posso estar morto.
Estou em pé. Estou falando. O que aconteceu comigo?
Cenário: Recomeça a Marcha Fúnebre. Astrogildo caminha cabisbaixo até a 2a parada. A música para de novo.
ASTROGILDO: (falando sozinho). Mas eu estou aqui com o atestado de óbito! E não ouvi meu coração! O que vou dizer em casa? Tenho que contar a eles…
Cenário: Recomeça a Marcha Fúnebre. Astrogildo caminha para o segundo cenário, a sala de sua casa, onde encontra sua mulher. A música pára. As luzes acendem.
ASTROGILDO: Oi … 
MULHER: Cruz credo Astrogildo, mas que cara de defunto é essa?
ASTROGILDO: Ué! Você já sabe? Quem te contou? Aposto que foi a Dona Maria Gorda, nossa vizinha.
MULHER: Ninguém me contou nada! Mas vamos lá meu velho, conte o que aconteceu. Por que é que você está com essa cara?
ASTROGILDO: Eu falo. Mas quero todos reunidos aqui na sala. Agora eu quero uma reunião familiar para dar a notícia de uma vez só, sem ficar repetindo à toda hora.
MULHER: Ora, Astrogildo. Deixe de fazer velório e conte logo. Você nunca foi de reunir a família.
ASTROGILDO: Zenaide… chama logo os nossos filhos. Por favor respeite os mortos.
MULHER: Mortos? Tá bom. (chamando os filhos) – Miiickiiii… Riquinhoooo. Venham aqui que o papai quer falar com vocês…
MICK: (gritando de fora do palco) Agora não! Tenho que estudar!
RICKINHO: (gritando de fora do palco) Mais tarde! Estou jogando video-game!
MULHER: É. Vou Ter que mudar de tática. (grita:) O almoço está na mesa !!
MICK: (entrando correndo junto com Rickinho) Ai que fome! Onde está? Cadê a comida?
RICKINHO: Até que enfim o almoço! Meu prato …?
MULHER: Seu pai quer falar com vocês.
MICK: Oi, pai. O que você tiver que me contar, conta logo porque eu preciso estudar. Preciso aproveitar para estudar enquanto estou viva.
RICKINHO: Fala aí, meu coroa. Qualé o lance?
MULHER: Muito bem, Astrogildo. Já estamos todos aqui. Qual é a notícia?
ASTROGILDO: Bem, o negócio é o seguinte: (pausa) – Bem, o negócio é o seguinte… (sem saber como entrar no assunto) – Bem, acho que vocês não vão acreditar, mas eu… mas eu…
Rickinho, Mick e a mulher em coro: FALA LOGO!
ASTROGILDO: Calma eu vou falar! É que eu estou morto! Isto mesmo! Eu morri.
Rickinho, Mick e a mulher juntos dão uma boa gargalhada.
ASTROGILDO: Escutem aqui, seus escarnecedores debochados. Eu não disse nenhuma piada. Eu estou falando sério. (eu sabia que ninguém iria me acreditar).
RICKINHO: Essa foi boa pai. Conta outra. Depois eu quero contar a última que eu ouvi lá na escola.
MICK: Acho que vou voltar para os meus cadernos. Posso ir?
ASTROGILDO: Está bem, seus patetas. Vocês pensam que eu estou brincando, não é mesmo? Então leiam isto. (Entrega o atestado de óbito para a mulher).
MULHER: (lendo o atestado). Sr. Astrogildo Gergolomano Souza Santos de Souza, casado, brasileiro… casa mortis… parada cardíaca… Meu Deus, então é verdade! (exclama caindo sentada na poltrona).
ASTROGILDO: Viram só como eu não estava brincando? O papai aqui está mais morto que a múmia do Egito. Venha cá minha filha… sinta as batidas do meu coração.
MICK: (colocando o ouvido no peito do pai) Meu Deus! Não está batendo.
(assusta-se). Mãe, o pai está morto mesmo!
ASTROGILDO: Agora você, meu filho. Sente o meu pulso. Afinal você está fazendo cursinho de medicina.
RICKINHO: (com dificuldade em achar o pulso) É mesmo incrível. Está mais parado que o ataque do Internacional!
ASTROGILDO: (triunfante). Então seus Tomés… Acreditam agora? Vocês não vão chorar? Se vocês gostam de mim, tem que chorar. Chorem! Vamos…
Mick e Rickinho se abraçam e choram artificialmente só para agradar o pai.
Astrogildo percebe e desaprova.
MULHER: Mas como é isso Astrogildo? Como é que você está morto, se você está vivo? Quer dizer… Ah! Eu não quero dizer mais nada! Que confusão!
ASTROGILDO: O médico falou que é de teimosia, mas que depois que eu me acostumar, a coisa fica bem mais fácil.
MICK: Médico? Quer dizer que o senhor foi ao médico e não nos contou nada?
ASTROGILDO: Claro! E quem você acha que assinou o atestado de óbito? O Orlando açougueiro? E como é que eu iria ficar sabendo que estou morto?
RICKINHO: O senhor por acaso pagou a consulta, pai?
ASTROGILDO: Claro que paguei. Acha que eu sou algum caloteiro?
RICKINHO: Então me desculpe, mas o senhor é muito burro. Ond

e já se viu um morto pagar a consulta?
ASTROGILDO: (caindo em si). Sabe que você tem razão? Além de defunto-vivo eu sou um morto-burro.
MULHER: Mas como é que você fica discutindo com seu pai numa hora dessas.
Respeite o seu pai, afinal ele é um defunto. Respeite a memória dele… quer dizer… eu não quero dizer nada porque minha mente está toda embaralhada.
MICK: Mãe, eu acho melhor a gente telefonar para o médico prá confirmar e também prá perguntar se é para fazer o enterro ou não.
MULHER: É mesmo. Eu vou ligar.
ASTROGILDO: Isso mesmo. E depois já pode ligar para a funerária e encomendar o meu caixão. (cantarolando)…”quando eu morrer, me enterre na Lapinha”.
MULHER: (com o telefone na mão). Pare com isso Astrogildo. Pare de cantar essa música. Você quer deixar a gente mais nervosa ainda? (disca um número)
VOZ DO MÉDICO: (Atendendo o telefone). Clínica do doutor Ado Steinburg Hesendorg de Nictolis bom dia!
MULHER: – Alô… doutor Ado? Tudo bem? Aqui é dona Zenaide, mulher do Astrogildo, que morreu mas não morreu. Quer dizer, aquele que o senhor diz que morreu mas está vivo. O senhor entende né?
VOZ DO MÉDICO: Perfeitamente dona Zenaide. Olha a senhora pode ficar sossegada.
Seu marido já era! Pode encomendar o seu vestido de luto e mande-o deitar já.
Ah… e não se esqueça de me convidar para o enterro.
MULHER: Mas doutor como é que pode? Ele está morto mas continua vivo…
VOZ DO MÉDICO: Eu não posso fazer nada, dona Zenaide. O coração dele não está batendo, a pulsação parou entende? Ele está clinicamente morto. E lugar de morto a senhora sabe onde é não é mesmo? Este mundo é dos vivos.
MULHER: (desolada). Está bem doutor… Obrigada… Olha, o enterro será amanhã.
(desliga o telefone).
RICKINHO: Então mãe, o que o médico falou?
MULHER: É verdade (chorando) seu pai está morto.
ASTROGILDO: (triunfante outra vez). Não falei? Eu não sou “cara” de mentir não.
Quando eu falo que tô morto é porque tô morto mesmo. E tem outra, eu sou o único defunto que vai assistir ao próprio velório. Riquinho, vai buscar o meu terno no alfaiate, aquele que eu mandei cerzir. Eu quero ser enterrado com ele.
Cenário: Apagam-se as luzes. Enquanto a sala é preparada para o Velório (caixão, flores, troca de roupa) uma pessoa levanta-se na platéia com foco iluminando-a e começa a ler um jornal.
PESSOA DA PLATÉIA: Vejam só isso! Astrogildo morreu. (lendo:) Convidamos os amigos e familiares ao enterro de Astrogildo Gergolomano Souza Santos de Souza, a se realizar na rua Cova Rasa, sem número, Cemitério do Adeus. Bairro dos que não voltam. Incrível! Eu falei com ele ontem. Justo agora que ele me devia uma grana! É nessa eu acho que dancei… A morte não espera por ninguém mesmo… Vou dar uma passadinha lá mais tarde. Pobre Astrogildo! (senta-se novamente após o foco nela se apagar).
Cenário: As luzes se acendem.
ASTROGILDO: Então, como estou?
MULHER: Digno de um defunto !
Os convidados começam a chegar. Dão o tradicional “pêsames” à mulher, e se dirigem ao caixão.
MARIA GORDA: (olhando para o defunto). Coitado! Este sim era um homem bom.
ASTROGILDO: Apoiado! Além de ser homem, eu era bom. Não sei o que era melhor.
Ser mais bom, ou mais homem.
SR.ANSELMO: É, mas os bons sempre se vão mesmo… Pobre Astrogildo!
ASTROGILDO: Não é o seu caso, “velho unha de fome”. Vai ficar mofando a vida toda aqui na terra.
SILVIA: Pobrezinho. Quisera fosse eu.
OSWALDO: E aí cara? Que furada hein? Já que você bateu as botas, dá pra me emprestar o carro prá sair com umas gatas?
ASTROGILDO: Nem morto!
OSWALDO: Iii o cara, aí ! Tá legal. Tá legal.
SR. CLEMENTE: Astrogildo, amigo velho,. Lembra-se de nossas farras? E agora?
Quem vai farrear comigo?
ASTROGILDO: Calma, Clemente. Assim você me mata de tristeza.
SR. CLEMENTE: Mas você já está morto, Astrogildo!!!
ASTROGILDO: Eu sei, imbecil. É força de expressão.
MÉDICO: (chega ao enterro). Como está Astrogildo ? Está melhor?
ASTROGILDO: Mais ou menos ! Doutor, eu estive pensando: Estou morto não estou?
Depois do meu velório, eu vou ter que entrar aqui neste caixão para ser enterrado, não é? E quando a tampa deste caixão se fechar, o que vai acontecer comigo?
MÉDICO: Bem Astrogildo? Teu futuro não vai ser muito bom não!
ASTROGILDO: Como assim doutor?
MÉDICO: Astrogildo, eu já lhe falei do único remédio que pode reverter esta situação, mas você não quer me ouvir.
ASTROGILDO: Doutor, eu já estou cansado de experimentar isso, experimentar aquilo. Prá mim isto não funciona. Estes remédios nunca me ajudaram em nada. Eu estou cansado dessa situação. Eu preciso de uma resolução.
MÉDICO: Eu entendo Astrogildo! O problema é que você está desiludido por ter passado sua vida inteira tomando os remédios errados. Este é diferente, este pode te ajudar.
ASTROGILDO: Como o Senhor me garante que esse remédio vai resolver o meu problema ?
MÉDICO: Astrogildo, sinta o meu coração. Hoje ele bate, mas um dia já esteve tão morto quanto o seu. Foi quando tive a oportunidade de conhecer este remédio e decidi tomá-lo. E é por isso que hoje eu estou aqui falando prá você. Quer mais
provas do que isto?
ASTROGILDO: Não ! O senhor me convenceu, afinal onde está o remédio? Aquele tal de Complexo J, não é?
MÉDICO: É, o Complexo J, peraí que eu vou pegar no carro.
(Médico sai).
SR.ANSELMO: (enquanto cheirava as flores do caixão). Atchim!! Atchim!!!!
MULHER: Rápido. Acudam! O velho está tendo uma crise!
SR.ANSELMO: Atchim!! Atchim!!!!
Oswaldo e Rickinho seguram o Sr. Anselmo.
SILVIA: O médico. Cadê o médico?
MARIA GORDA: Eu o vi saindo!
MICK: Vamos lá levar o homem. Se não ele morre também!
Todos saem ficando apenas o Astrogildo.
(Médico retorna com uma Bíblia).
ASTROGILDO: (assustado) Que remédio enorme!
MÉDICO: Mas este é o único que vai resolver o seu problema. Calma, vamos ler a bula.
Indicação: Contra todos os males do corpo, alma e espírito.
Contra-indicações: Nenhuma.
Posologia: Dose única, seguida de confissão de Jesus Cristo como único Senhor de sua vida.
Efeitos: Alegria, paz, mansidão, domínio próprio…
ASTROGILDO: Puxa Doutor! É isso mesmo que eu preciso.
(Astrogildo toma o remédio)
MÉDICO: Agora repita comigo:
EU, ASTROGILDO,
MÉDICO: CONFESSO QUE SOU PECADOR…
MÉDICO: PEÇO PERDÃO E ENTREGO TODA A MINHA VIDA …
MÉDICO: EM TUAS MÃOS, JESUS CRISTO.
MÉDICO: TU ÉS O ÚNICO SENHOR E SALVADOR DE MINHA VIDA.
( Começa-se a escutar o coração batendo).
MÉDICO: O que você está sentindo?
ASTROGILDO: Não sei explicar, mas é alguma coisa diferente que eu nunca havia sentido.
MÉDICO : É, eu também não soube descrever quando isto ocorreu comigo. Eu me senti seguro.
ASTROGILDO: É isso! Eu me sinto seguro. É como se eu tivesse feito algo certo.
MÉDICO: Você fez a coisa certa. Lembra dos outros remédios que você tomou?
ASTROGILDO: Ah, não quero nem me lembrar.
MÉDICO: Pois é, este é um remédio muito especial. Curou seu espírito, salvou sua alma.
ASTROGILDO: Curou meu espírito ?
MÉDICO: Isto mesmo. Outros remédios ajudaram o seu corpo, mas nunca curaram seu espírito.
ASTROGILDO: Entendo. (pausa). E a minha família?
MÉDICO: Eles nunca foram ao meu consultório. Nunca tive oportunidade de receitar o Complexo J para eles.
ASTROGILDO: Então eles também estão mortos ?
MÉDICO: Sim. E não sabem disso! E assim como eles, ainda existem muitos por aí!
Almas vazias, sem vida para com Deus, como sepulcros invisíveis, os quais os
homens passam sem sequer perceber, vidas ocas, que não inspiram ninguém!
Mas graças a Deus por Jesus Cristo, que pela sua morte trouxe vida a todos nós!
Pa

ra que aqueles que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu!
Pois quem quiser salvar a sua vida, perde-la-á, mas quem a perder por amor ao evangelho, aquele que negar a sua própria vontade e morrer para si mesmo, este sim encontrará vida, vida em abundância. Pois Jesus é o Caminho e a Verdade, Ele é a Ressureição e a Vida, todo aquele que nEle crê, ainda que morra, viverá …
Eternamente!!

Esta peça foi readaptada do original “Morto Vivo”

Marcello Fundão

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